quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Dedo e o Corpo

Havia um certo desespero no ar. Maria, a mãe, conduzia Suelen, a filha, que trazia agarrado nos braços, como um embrulho, aquilo que logo adivinharíamos ser um bebê. O desespero era de Maria, Suelen com o olhar atônito, catatônico implorava compreensão...

O embrulho inerte mostrava o cadáver – cadáver não, que à criança não se deveria aplicar essa palavra – o corpinho sem vida de um recém nato. Todos acorremos, desembrulhamos, massageamos, oramos... em vão. A morte não cedeu seu espaço.

Durante anos me perguntei por que crianças morriam. E aquele rostinho sem vida me parecia sempre que eu atendia uma criança em situação de emergência.

A criança de baixo peso mostrava sinais de desnutrição grave, sarna e péssima higiene. Seus lábios cianóticos nos diziam de sua luta para respirar.

A mãe permanecia estática. A avó em desespero. A mãe tinha uns 14 anos e o corpo e o rosto de menos idade. A avó deveria ter uns 32 e corpo e rosto de 50...

Naquele caos de choro, desespero, falta de material, emoções, falta de preparo profissional e tensões, não atentei para as setas que apontavam para a mesma direção – SAÚDE PÚBLICA.

E da maneira como convergiam só, fui entender anos depois. Porque como recém formado, filho de classe média, com todos os preconceitos trazidos do berço, meu dedo indicador (ou segundo quirodáctilo direito, como gostávamos de falar) só apontavam para Suelen – menina irresponsável que abrira as pernas e não soubera nem cuidar de seu filho.

O primeiro sinal de lucidez foi durante uma discussão sobre o caso, quando descobrimos outros agentes envolvidos nos fatos: a desnutrição da mãe; a desnutrição da avó; o analfabetismo de ambas; e suas condições de moradia.

Neste dia uma médica de cabelos brancos, tida por nós como ultrapassada por gostar de prescrever fórmulas e chás (não era moda na época), introduziu outros elementos na discussão: quem eram essas pessoas; onde viviam; onde trabalhavam; que chance a sociedade lhes havia dado; etc.

Ela falou uma coisa que passou e me espreitar tanto quanto o rosto daquela criança: um dedo não pode ser visto como apenas um dedo no corpo de uma pessoa. Ele tem que ser visto no contexto do corpo. Um óbito não é apenas um óbito, uma estatística, uma causa. Se não entendermos o conjunto, não salvamos o dedo.

Tantos anos depois, tantas discussões e disparates vividos e falados, ainda nos arrastamos neste país em situações parecidas. Vivemos a dengue, a febre amarela, a leishmaniose, o avanço da malária, a esquistossomose e as marias e suelens onde estiverem existindo aos milhares.

A Saúde Pública avançou e avança. Incorporou o entendimento de que tem que procurar o diálogo permanente em todos os níveis e áreas: da educação básica ao saneamento, da sociologia à tecnologia de ponta, da saúde preventiva à cirurgia mais complexa. Estas vertentes engatinhavam na época por múltiplos fatores, principalmente os políticos.

Se ainda se aplica a velha mentalidade, de que é melhor um povo inculto e sem saúde, dependente das benesses dos políticos, a transformação também e esta será política.

A transformação pode começar pelo voto.

A propósito, a criança se chamava Maiquessuel.